domingo, janeiro 02, 2005

Jardins

Fiquei praticamente uma semana sem atualizar o blog e, durante este tempo estive a procura de textos, crônicas, artigos e até mesmo poesias que fossem publicáveis. Achei coisas interessantes, entre elas o texto que segue abaixo. A data em que foi produzido eu não tenho certeza, mas deve ter no mínimo três anos....

Saudações, companheiros que apreciam a boa literatura!

Outro dia estava eu procurando uma crônica do Rubem Alves na internet – era em especial uma crônica do livro "O Retorno e Terno", na qual o autor define a amizade da forma mais plausível e poética que um escritor já conseguiu. Não achei a crônica que procurava especificamente, mas achei esta (que segue abaixo), chamada "Jardins" e tirada do mesmo livro, também belíssima, que inclusive conta com recheio especial: poema de Cecília Meireles (minha favorita).
Bom, o que tem a ver, afinal de contas, eu enviar este texto a vocês? É que ontem, quando eu despertava – às 3 da tarde, registre-se – para mais um enfadonho Domingo, liguei a TV e o que passava era um filme com o Kevin Costner, chamado "Waterworld" ou coisa assim. Fato é que o filme, de certa forma, era a personificação do "poema-crônica" do Rubem Alves: um mundo sem o verde das plantas ou o colorido das flores, aquele mesmo mundo de ficção científica que causa horror evocado por Alves em "Jardins".
Um texto e um filme mudaram a percepção que eu tinha da natureza. Tudo de repente ficou mais harmônico e necessário. Como o mundo é belo! Leiam a crônica, assistam o "Waterworld", "Mad Max", ou qualquer coisa do gênero. Talvez vocês pensem que escrever sobre tal evento seja besteira, mas eu não poderia deixar de compartilhar isso com pessoas que ainda são sensíveis à literatura.

JARDINS

"Depois de uma longa espera consegui, finalmente, plantar o meu jardim. Tive de esperar muito tempo porque jardins precisam de terra para existir. Mas a terra eu não tinha. De meu, eu só tinha o sonho. Sei que é nos sonhos que os jardins existem, antes de existirem do lado de fora. Um jardim é um sonho que virou realidade, revelação de nossa verdade interior escondida, a alma nua se oferecendo ao deleite dos outros...
Mas os sonhos, sendo coisas belas, são coisas fracas. Sozinhos, eles nada podem fazer : pássaros sem asas... São como canções, que nada são até que alguém as cante;como as sementes, dentro dos pacotinhos, à espera de alguém que as liberte e as plante na terra. Os sonhos viviam dentro de mim. Eram posse minha. Mas a terra não me pertencia.
O terreno ficava ao lado da minha casa, apertada, sem espaço, entre muros. Era baldio, cheio de lixo... Mas a imaginação é coisa mágica, tem o poder para ver e cheirar o que está ausente.
Um dia o inesperado aconteceu. O terreno ficou meu. O meu sonho fez amor com a terra e o jardim nasceu. Não chamei paisagista. Queria um jardim que falasse. Pois você não sabe que os jardins falam? Quem diz isto é o Guimarães Rosa. (... )
Queria o jardim dos meus sonhos, aquele que existia dentro de mim como saudade. O que eu buscava não era a estética dos espaços de fora; era a poética dos espaços de dentro. Eu queria saber ressuscitar o encando dos jardins passados, de felicidades perdidas, de alegrias já idas. "Em busca do tempo perdido..."
Uma pessoa comentando este meu jeito de ser, escreveu: "Coitado do Rubens! Ficou melancólico." Não entendeu. Pois melancolia é justamente o oposto: ficar chorando as alegrias perdidas, num luto permanente, sem a esperança de que elas possam ser de novo criadas.
Aceitar como palavra final o veredito da realidade, do terreno baldio, do deserto. Saudade é a dor que se sente quando se percebe, a distância que existe entre o sonho e a realidade! Mais do que isto: é compreender que a felicidade só voltará quando a realidade for transformada pelo sonho, quando o sonho se transformar em realidade. Por isso um paisagista seria inútil. Pra ele fazer o meu jardim ele teria que sonhar os meus sonhos.
Nada me horroriza mais que os filmes de ficção científica onde a vida acontece meio aos metais, à eletrônica, nas naves espaciais que navegam pelos espaços siderais vazios... E fico a me perguntar sobre a perturbação que levou aqueles homens a abandonar as florestas, as fontes, os campos, as praias, as montanhas... Com certeza um demônio qualquer fez com que se esquecessem dos sonhos fundamentais da humanidade. Com certeza seu mundo interior ficou também metálico... E com isso a esperança do Paraíso se perdeu.
Este pequeno poema de Cecília Meireles me encanta, é o resumo de uma cosmologia, uma teologia condensada, a revelação do nosso lugar e do nosso destino:
"No mistério do Sem-fim,
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro:
no canteiro, uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o Planeta e o Sem-Fim,
a asa de uma borboleta."
Metáfora: somos a borboleta. Nosso mundo, destino, um jardim. Resumo de uma utopia. Programa pra uma política. Pois a política é isto: a arte da jardinagem aplicada ao mundo inteiro. O Universo tem, para além de todas as misérias, um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o Paraíso. "
( Rubem Alves - O Retorno e Terno - crônicas )

P.S.1: Desculpe a mensagem ser tão extensa ( até excluí outros comentários menos relevantes!).
P.S.2: A boa literatura à qual me refiro é por conta do Rubem Alves ( só pra ficar claro